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No combate ao racismo no futebol, Brasil inspira vizinhos

15 de abril de 2024

É longa a ficha de ofensas racistas proferidas contra torcedores e jogadores brasileiros, mas maior conscientização força sul-americanos a enfrentar a questão – como na recente punição ao Boca Juniors.

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Jogador do Boca Junior se aproxima de jogador do Palmeiras que está com a bola
Boca Juniors deverá pagar multa e hastear bandeira contra o racismo devido a injúrias proferidas por seus torcedores em jogo contra o Palmeiras em setembro passado, na BomboneraFoto: LUIS ROBAYO/AFP

Na mesma semana em que o clube argentino Boca Juniors foi punido pela Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol) por atos racistas de seus torcedores em uma partida contra o Palmeiras, câmeras em Belo Horizonte registraram atos de injúria racial por torcedores de outro time argentino, o Rosário Central.

Os registros do tipo em partidas sul-americanas vêm aumentando, e especialistas apontam a maior conscientização dos brasileiros como um dos motivos para os episódios estarem sendo denunciados com mais frequência. Por outro lado, nos países vizinhos, a percepção sobre a importância de combater o racismo no futebol ainda está longe de ser a mesma do Brasil.

Em 2005, o jogador argentino Leandro Desábato, que atuava pelo Quilmes, foi preso ao sair do estádio do Morumbi após chamar o são-paulino Grafite de macaco. À época, houve críticas na Argentina à postura das autoridades brasileiras sobre algo visto por muitos no país vizinho como uma provocação normal. Após quase duas décadas, o cenário não sofreu grandes alterações.

No período de janeiro e agosto de 2023, o Observatório da Discriminação Racial no Futebol registrou um avanço de 50% no número de casos registrados em competições da Conmebol em comparação com todo o ano de 2022.

Diferença no grau de conscientização

Os atos não envolvem apenas torcedores e jogadores argentinos. Por exemplo, em julho de 2023, o uruguaio Sebastián Avellino, preparador físico do clube peruano Universitário, foi detido após ser acusado de fazer gestos racistas a torcedores na Arena Corinthians, em São Paulo. A medida gerou protestos no Peru, com ondas de solidariedade ao preparador.

À época, o Universitário criticou a ação e afirmou que Avellino estava sendo "tratado como delinquente no Brasil". O clube classificou a decisão como "arbitrária", disse que torcedores do Corinthians ofenderam seus jogadores e afirmou "rechaçar qualquer tipo de discriminação". No início de abril, Avellino foi condenado em segunda instância pelo Tribunal de Justiça de São Paulo pelos atos.

Torcedores em uma arquibancada gesticulando em direção ao campo
Torcedores do Boca Juniors na partida contra o Palmeiras de setembro passado, em Buenos AiresFoto: LUIS ROBAYO/AFP

Para o historiador peruano Yobani Maikel Jauregui, que estuda o racismo no Peru e fez mestrado e doutorado no Brasil, há uma diferença grande na conscientização nos dois países sobre o problema, o que leva a maioria dos peruanos a pensar que as punições brasileiras são exageradas.

"O tema de fundo é reconhecer que o problema do racismo existe, e os peruanos não fazem isso. Desta forma, não acontecerá nada. Está muito normalizado, e o Estado também não reconhece como uma questão", afirma o historiador. "O racismo é algo muito comum no Peru. A sociedade é muito racista, e é um tema estrutural."

Na visão de Marcelo Carvalho, fundador e diretor executivo do Observatório da Discriminação Racial no Futebol, o debate sobre o racismo nos países vizinhos está muito atrasado em relação ao Brasil. Segundo ele, o fato de o país criminalizar o racismo há décadas, algo que não ocorre em uma série de outras nações, é uma mostra de que o problema é encarado com mais firmeza.

Ele destaca que outra diferença importante é o porcentual da população autodeclarada negra, que é muito maior no Brasil que em outros vizinhos, como Uruguai e Argentina.

"Racismo é visto como algo alheio"

Na final da Libertadores de 2023, quando Fluminense x Boca Juniors se enfrentaram no Maracanã, uma série de acusações de racismo foi feita. Um dos relatos mais comuns foi o de torcedores imitando macacos ou insultando brasileiros de mono (macaco em espanhol).

"O racismo não representa a mesma questão histórico e social na Argentina que no Brasil. Muitos não veem como um problema", afirma Diego Murzi, integrante da ONG Salvemos al Fútbol, que realizou uma série de estudos sobre discriminação na Argentina. "O racismo é visto como algo alheio e distante, não como uma questão daqui. Muito chegam a afirmar que não existe racismo no país."

Sobre a reincidência de casos mesmo após as punições no Brasil – no caso ocorrido na Libertadores, diversos argentinos chegaram a ser detidos – Murzi credita isso à falta de punições por racismo na Argentina. "Como não há maiores sanções, muitos pensam que será o mesmo no Brasil."

As punições aplicadas atualmente aos clubes – como no caso da Conmebol ao Boca Juniors, que prevê o pagamento de multa e o fechamento de um setor do estádio da equipe onde será exibida uma faixa com os dizeres "chega de racismo" – são pouco efetivas na dissuasão, avalia Murzi. "Não se reconhece o problema, então nada muda com as campanhas", afirma. Os próprios comentários nas redes sociais nas postagens das redes sociais do clube anunciando as punições tratam o tema com desprezo e muitas vezes reforçam o racismo.

Quando questionado se medidas mais drásticas, como a exclusão de clube das competições em caso de atos racistas por parte de seus torcedores, algo que ocorreu no Brasil em 2014 em uma partida entre Grêmio x Santos pela Copa do Brasil, Murzi acredita que poderia ter mais resultado. "Poderia ajudar a diminuir os casos, ainda que não mudasse a cultura", avalia.

"Objetivo é ferir o adversário"

Murzi afirma que esses casos se enquadram em um ambiente no qual há uma tentativa de se provocar ao máximo e ferir os adversários. Por sua vez, as ações são naturalizadas por muitos, que dizem que apenas se trata do "folclore do futebol argentino". Nesse contexto, são comuns cânticos com referências homofóbicas e xenófobas no país, com destaque para imigrantes paraguaios, peruanos e bolivianos.

Há até registros de cânticos antissemitas fazendo referências ao Holocausto no futebol local. Na rivalidade entre Chacarita e Atlanta, clube conhecido por ser composto pela comunidade judaica de Buenos Aires, muito das provocações tratam da origem dos torcedores. Em uma canção que ganhou destaque, os apoiadores do Chacarita zombam e dizem que matarão os rivais para fazer sabão, em alusão ao Holocausto.

Recentemente, devido à crise econômica que a Argentina enfrenta, brasileiros passaram a devolver as provocações com menções ao tema, e chegaram até a queimar notas de peso argentino nos estádios. Segundo Murzi, foi algo "duro" e que teve impacto nos torcedores argentinos. Ele avalia que os próximos jogos envolvendo brasileiros e argentinos têm algum risco de violência, já que as provocações ficaram "latentes" após os episódios recentes.

Debate ajuda a acabar com "folclore"

Carvalho, do Observatório da Discriminação Racial no Futebol, lembra que, até 2014, também havia discussões em partes do Brasil sobre o termo macaco ser uma ofensa ou apenas folclore, especialmente no Rio Grande do Sul. Foi naquele ano que o Grêmio foi excluído da Copa do Brasil após câmeras flagrarem torcedores gritando macaco em direção ao goleiro Aranha, à época no Santos.

"Quando o debate ganhou força no Brasil, a questão no Rio Grande do Sul foi cessando. É o que acredito que também acontecerá nos outros países da América do Sul", afirma. "Aos poucos, o que está sendo feito hoje também levará que os que acham que é folclore entendam de fato que isso é um crime."

"Faz parte da conscientização, que depende das punições e comunicações da Conmebol", aponta. Ele lembra que já existem resultados, como uma série de cartilhas de clubes argentinos que alertam seus torcedores sobre o fato de que insultos racistas são punidos no Brasil.

Repetição na Europa

Na Europa, os casos de racismo no futebol não são uma novidade, mas o tema ganhou novos contornos com a repetição de ofensas ao brasileiro Vini Jr. na Espanha. A La Liga, entidade responsável pelo campeonato espanhol, foi alvo de seguidas críticas por conta da falta de ações para coibir os atos, que partem especialmente de torcedores rivais do Real Madrid, o clube do atacante.

O tema divide opiniões, e chegou até a repercutir na política espanhola. Após uma partida contra o Valencia em 2023, um dos momentos com mais ofensas contra o brasileiro, Yolanda Díaz, vice-presidente do governo e filiada ao partido de esquerda pediu medidas por parte das autoridades do futebol, e disse que aquilo "não poderia ocorrer". Já o partido Vox, de ultradireita, expressou à época em uma nota que aquilo se tratava apenas de ofensas verbais, e que o mais importante seriam outros ataques físicos que estavam ocorrendo no país.